Acordamos pela manhã. Alguns, com a sorte de terem contado com o acalento de uma pessoa companheira, durante a noite. Mas praticamente todos estivemos sobre uma cama confortável, abrigada do frio. Essa cama permanece debaixo de um teto, que pode ser de uma casa grande ou modesta, própria ou de outros. Só por essas condições, já seríamos privilegiados. Mas a palavra privilégio não usamos para isso, não é mesmo?
Temos água quente para um banho. Temos roupas confortáveis, bonitas. Temos algo para comer, desde o simples, como uma fruta, até itens realmente sofisticados.
Vamos ao trabalho. Para muitos, trabalhar chega a ser um peso, um mal necessário. Para outros, é uma grande satisfação. Em ambos os casos, existe um emprego que paga as contas, o que é um privilégio, nesses tempos modernos. Contas, aliás, da internet rápida, da TV a cabo, da água encanada, da eletricidade. Ora, o que tem demais, ter uma internet rápida? É uma necessidade, diriam alguns. Mas seus olhos, não dizem nada. São meros escravos, esquecidos. Quem é que fica feliz por ter olhos que enxergam? Quem é que fica feliz porque consegue ler, consegue apreciar um jardim, um sorriso de uma criança? Não, não se pensa nos olhos. Nem nas mãos que são capazes de digitar, de trabalhar, de acariciar, de ajudar. Ora, o que tem demais, ter mãos? Todos têm mãos... Não é? E pernas, e braços e pés.
Trabalhamos o dia todo. Em algum momento, somos defrontados por um chefe ingrato. Ah, que absurdo! Trabalhamos tanto, fizemos a tarefa com tanto cuidado, do jeito que ele pediu! Mas ele não quis saber. Nos criticou, nos ofendeu. Não percebeu a nossa dedicação, a nossa aplicação. Como é injusto esse mundo, né?
Voltamos para casa cabisbaixos, pensando dentro do carro enquanto ouvimos um pouco de música para descontrair. Que dia horrível hoje – pensamos. Pensamos, enquanto ouvimos e dirigimos.
Chegamos em casa chateados, rememorando os insultos que nos foram ditos. Ficamos irritados quando a pessoa companheira, que nos aguarda em casa, pergunta se lembramos de passar no supermercado. Supermercado! Com tanta coisa na cabeça, será que não percebe que isso não tem a menor importância agora? Quanto egoísmo, não vê que não estou bem? – pensamos. E ficamos em nossos pensamentos, presos no orgulho ferido, na pena de nós mesmos. Se temos filhos pequenos, e nessa hora algum deles apronta algo errado... Ah, que inferno! Já não basta o dia difícil no trabalho? Talvez bastasse. Assim como bastaria, para alguns, a possibilidade de ter filhos. Filhos pequenos, que nos amam.
O horário avança, e estamos famintos. Comemos algo para tapear, porque não passamos no supermercado para providenciar o jantar. Que infelicidade! Lemos um pouco. Um livro, alguma coisa na internet. Ficamos sabendo dos acidentes, dos políticos corruptos, dos assassinatos. Uma criança foi vítima de uma bala perdida e morreu antes de chegar ao hospital. Que mundo injusto! Hoje o dia está carregado!
Tomamos mais um banho quente, antes de dormir. Deitados na cama, calados, mal dizemos boa noite à pessoa ao nosso lado. Ainda não conseguimos aceitar o fato de que fomos maltratados sem causa. Procuramos uma razão para isso. Deve existir uma razão, afinal, nada acontece por acaso. Que pensamento filosófico, bonito, não é? Deus, se você existe, veja o que pode fazer por mim porque estou sendo humilde, não vê? Estou querendo aprender!
Nada acontece por acaso! Acontece. A-con-te-ce. Um dia inteiro de acontecimentos, que não foram por acaso. Será que é em relação a esse dia inteiro de acontecimentos que estamos pensando? Será que é isso que estamos levando em consideração com a nossa filosofia de fundo de quintal? Não, com certeza não. Estamos indignados com um único fato, que chamamos de injustiça. Nos comportamos como vítimas e nos sentimos importantes, assim, como vítimas. Vítima é aquele que sofre a ação de outros, ou seja, não tem responsabilidade. Nosso ego adora dizer que não teve responsabilidade, que é inocente. Adoramos ser vítimas, e ficamos rememorando os infortúnios ad eternum. Isso quando não os criamos! Afinal, somos humanos!
Vivemos insatisfeitos. Eu tenho saúde, mas estou cansado dessas dores de cabeça. Tenho dinheiro para pagar as contas, mas não posso ir para Paris passear. Tenho uma pessoa companheira que me ama, mas ela tem defeitos que eu não suporto. Tenho filhos saudáveis e que me amam, mas eles não me obedecem! Tenho uma casa, mas ela está precisando de reformas. Tenho amigos, mas eles não me ligam! Tenho olhos, mas ultimamente preferia não ver tanta pobreza! Tenho um carro, mas é velho e vive com problemas. Tenho um trabalho, mas odeio o que faço.
Tão fácil de ver o que não está certo, não é mesmo? “O que não está certo”, dizemos. Porque as bençãos que a vida nos cobre não são nada demais. São obrigações. Se existe um Deus, um Pai, Ele não faz mais do que Sua obrigação, nos dando o “básico”. A vida tem que ser do jeito que a gente quer e o mundo deve servir aos nossos caprichos. Caso contrário, seremos infelizes. - Viu, Deus, serei infeliz! Porque Você não me ouve! Estou cansado de orar e não ser atendido.
A vida é injusta. Por que tantos problemas? Melhor seria não ter que viver.
Responsabilidade? Gratidão? Alegria por estar vivo? O que é isso? Será que um dia ainda vamos descobrir?
Um comentário:
Fantásticos Jone!
O mal do ser humano é ser humano demais, tanto que nos apegamos no superficial e esquecemos completamente do fundamental.
Somos gratos a tudo e ao nada que é necessário.
Muital luz p/ ti!
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